Este é um Memorial Científico. No entanto, o próprio objeto – a Psicologia – torna inevitável à todos nós, psicólogos, educadores, estudiosos do fenômeno psíquico e educacional, a menção aos aspectos pessoais, inextricavelmente mesclados aos profissionais e científicos. Desta forma, neste item, mesclarei, sem nenhum intuito confessional de minha parte, mas, forçada pela natureza do objeto, reflexões científicas com alguns temas da minha história pessoal.
Cursei o primeiro, segundo e terceiro graus em escolas públicas, sendo esta, para aquele momento, a única opção possível e cabível à realidade econômica de minha família. Sempre tive na educação, a melhor opção para reverter minha condição econômica inicial que se apresentava de modo bastante adverso.
Tendo isto em mente, no período em que cursei a universidade, desempenhei as mais diversas atividades, fui monitora, auxiliar de pesquisa e trabalhei em projetos de extensão que me interessavam, tanto para enriquecimento pessoal, quanto como alternativa para compor a renda que garantia minha permanência na universidade (longe de casa) e ao mesmo tempo como uma forma de me manter próxima e intimamente ligada ao conhecimento, à ciência, pesquisa e à profissão que escolhi. O contato com os professores sempre foi, para mim, nessas atividades, o mais rico ganho secundário. A carreira docente associada à liberdade de pensamento, desde então, se constituiu em um de meus objetivos profissionais.
Durante o período de graduação, tive a oportunidade de participar de grupos de estudos, atividades ligadas ao centro acadêmico, diretório central estudantil, e de vários cursos de extensão universitária nas diversas áreas de atuação da Psicologia.
O passeio por estes diferentes caminhos não foi suficiente para garantir-me a definição por uma área específica de atuação; pelo contrário, tudo o que aprendia em uma das áreas ampliava minha visão e me fornecia subsídios para pensar as demais. Desde então, entendo a prática do psicólogo como generalista; não foi por caso que participei da elaboração da “Carta de Serra Negra”, documento elaborado em evento organizado pelo CRP, que assim define a profissão: como generalista. Embora a clínica seja a área à qual mais me dedico, a psicologia organizacional me empresta o senso prático, a social o forte senso crítico e a escolar, certeza de que a educação é nossa melhor alternativa para evoluirmos enquanto nação e seres humanos, sendo então minha área de dedicação no mestrado e doutora, assim como área que trabalho na decência atualmente.
Meu primeiro trabalho depois de formada, com 22 anos de idade, foi na área social. Como psicóloga da Prefeitura de Santo Anastácio, coordenei a implantação das “ações integradas de saúde” do município, organizei debates, encontros de entidades sociais, fiz palestras, trabalhei em processos seletivos de pessoal, buscando sempre primar, em meus atos, por um tom ético e criterioso, meta muito difícil de ser atingida em se tratando de uma prefeitura.
Já no primeiro ano de formada ministrei aulas no curso de Psicologia da UNOESTE, uma das universidades da cidade de Presidente Prudente; curso este que na época se encontrava em implantação.
Ainda em meu primeiro ano depois de formada, fui aprovada, em concurso público, para trabalhar na prefeitura da cidade de São José do Rio Preto. Nesta cidade trabalhei no “Centro Municipal de Estimulação” onde eram desenvolvidas atividades com crianças na faixa etária entre 7 e 12 anos, encaminhadas pela rede municipal de ensino para psicodiagnóstico e posterior acompanhamento psicoterapeutico. A equipe então formada por cinco psicólogas, duas fonoaudiólogas e três pedagogas, desenvolvia o trabalho avaliativo e psicodiagnóstico utilizando-se de dinâmicas de grupo e discussão multidisciplinar. Com base nesse trabalho as crianças eram encaminhadas para trabalhos psicoterapêuticos e estimulação psicomotora individual ou grupal, apoio pedagógico, fonoaudiológico e acompanhamento familiar. O desenvolvimento dessas atividades me propiciou amplo contato com a atividade diagnóstica de apoio ao trabalho educativo e, creio, ótima condição de analisar e criticar sua validade e ainda propor novas perspectivas para esse trabalho que integra a psicologia e a educação.
Mesmo estando São José do Rio Preto, cerca de 300 Km da cidade de Presidente Prudente, mantive-me ligada à Universidade na condição de Professora. Viajava semanalmente para ministrar aulas no Curso de Psicologia, salientando que esta opção foi feita muito mais pelo prazer que a atividade docente me proporciona, do que pelos rendimentos financeiros da atividade. Dar aulas é, até os dias atuais, um prazer de que não abro mão.
No mês em que completei um ano de trabalho junto ao “Centro de Estimulação”, fui convidada a coordenar o Curso de Psicologia na universidade de Presidente Prudente em que já lecionava. Mudei-me então para a referida cidade, na qual resido até hoje, onde trabalhei na coordenação do referido curso por sete anos, trabalhando para implantá-lo e conduzi-lo ao reconhecimento pelo do MEC.
Neste período também trabalhei em consultório, em escola para crianças autistas, desenvolvi consultorias em empresas, organizei semanas de estudos, e ingressei no mestrado em Psicologia Clínica da PUC de São Paulo onde pesquisava psicossomática e concluí os créditos previstos.
Neste momento pesquisando psicossomática apresentei de modo bastante inusitado e enfático o argumento de que as pesquisas são autobiográficas: somatizei um câncer e não concluí a pesquisa.
Um ano antes havia me desligado da Universidade e a prática docente me fazia muita falta.
O tratamento do referido câncer prolongou-se por três anos. Nesse período, distante da sala de aula, trabalhei em meu consultório e na TV Fronteira – afiliada da Rede Globo, como consultora de jornalismo e psicóloga. Enquanto responsável pelos treinamentos, desenvolvimento organizacional e processo seletivo desta organização, optei por retomar meus trabalhos de pesquisa através do MBA (Master em Business Administration) onde desenvolvi minha monografia com o tema “O Processo Seletivo na Era do Conhecimento”. Pesquisei os processos seletivos no contexto atual, analisei o uso de testes, as dinâmicas de grupo, e entrevistas, critiquei práticas antigas e descontextualizadas e propus alternativas.
Ao concluir o MBA, retomei a prática docente e em fevereiro de 2002 ingressei no mestrado em educação oferecido pela UNESP na cidade de Presidente Prudente tendo como área de concentração “Políticas Públicas”. Propus-me assim a estudar a avaliação do ensino superior no Brasil. O título de “mestre” parecia estar bastante amadurecido em mim, pois em treze meses, conclui todos os créditos, desenvolvi a pesquisa e defendi a dissertação. Obtive o título de mestre em 28/03/2003.
Fiz a primeira defesa do curso de mestrado em educação da UNESP de Presidente Prudente mesmo sendo integrante da segunda turma deste programa. Atribuo esse feito a dois principais fatores: Primeiro ao fato de ter tido uma excelente orientação, como é comum em minha história de vida deparar-me com grandes professores que marcaram profundamente minha vida sempre de modo positivo, e segundo a toda emoção que a educação e a prática docente mobilizam em mim.
Em 2003, assumi a coordenação da Gestão de Pessoas da IESPP (Instituição de Ensino Superior de Presidente Prudente), aonde venho sistematizando o fluxo de trabalhadores desta instituição (professores e funcionários administrativos). Procuro realizar este trabalho dentro de um embasamento filosófico calcado em princípios éticos e implantando um processo seletivo moderno que serve, inclusive, de modelo para as demais faculdades ligadas ao grupo UNIESP, que hoje já conta com mais de 20 unidades em todo o estado. Desenvolvo esse trabalho até a presente data.
Ainda em 2003, com base nos dados da pesquisa desenvolvida no mestrado, publiquei o livro “O Provão em questão”. Esta publicação vem ao encontro da concepção que perpassa toda minha prática: a idéia de que o conhecimento deve ser divulgado e colocado ao alcance do público em geral. O conhecimento, se hermético, perde sua completamente sua utilidade. Este livro buscou resgatar, correlacionar e analisar nossas heranças autoritárias e coronelistas as dificuldades de trabalharmos com os processos avaliativos em seus diversos níveis. Este trabalho foi exibido no programa “Globo Repórter”, na Rede Globo de Televisão, produzido por Mauricio Maia e apresentado por Ernesto Paglia.
No ano seguinte, 2004, assumi como psicóloga as atividades do Colégio UNIESP e o NAP (Núcleo de Apoio Psicopedagógico) onde desenvolvo atividades de orientação de pais, alunos e professores encaminhando e propondo soluções para problemas ligados a aprendizagem que surjam dentro da instituição e a ela relacionados.
Essa prática, somada ao trabalho da clínica, proporcionaram um amplo contato com os problemas de aprendizagem e crise da escola contemporânea. Desde então vinha estudando, participando de debates e congressos e apresentando trabalhos que abordam a questão da constituição do sujeito contemporâneo e sua correlação com os problemas de aprendizagem onde situo de modo mais enfático o Transtorno de Déficit de atenção com ou sem Hiperatividade (TDA/H). Nesse contexto surgiu o interesse pelo que trabalhei no doutorado, defendido na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e orientado pela professora Alexandra Ayach Anache, e defendido em 2009 com o título Transtorno de Déficit de Atenção de Hiperatividade: os (des)caminhos da construção de um conceito.
Minha afinidade e conseqüentemente a do projeto que desenvolvido, com a linha de pesquisa: educação e trabalho, se dá porque a compreensão da constituição do sujeito, e em especial do sujeito contemporâneo, é essencial para a formação da estrutura teórica que subsidia meu trabalho. Igualmente o estudo e a compreensão da questão da aprendizagem e construção do conhecimento fornecem o referencial necessário para o desenvolvimento do tema proposto de modo crítico. Dito de outro modo: a inter-relação ou a correção entre a constituição do sujeito contemporâneo e os processos de aprendizagem e construção do conhecimento constituiu-se no objeto de estudo de minha tese.
No mesmo ano, publiquei o livro baseado na tese, intitulado “A Produção do TDA/H”. O livro foi assim intitulado pois defendo a idéia que o conceito de défict de atenção é uma produção de um conjunto de fatores presentes no contexto contemporâneo, de uma sociedade organizada em torno do capital e da constituição de uma estrutura de personalidade onde sujeito e escola parecem não mais serem feitos um para o outro.
Neste memorial falo pouco sobre minha prática clínica que “já completou a maioridade”. Deixo para a clínica o espaço sigiloso e discreto que muito bem se harmoniza a ela. Contudo, é nesse espaço que passo a maior parte do meu tempo, aplicando e vivendo toda a gama de conhecimento que as áreas afins me oferecem. Ela é completada e completa todas as outras práticas. É também na clínica que a teoria e a prática se somam às expressões de amor. Dela não sei escrever sem sentir-me pulsar de modo diferente. Neste lugar me sinto plena.
Além de todo esse relato, resta ainda a convicção de que, gradativamente, tornei-me alguém capaz da superação das adversidades, tendo como vias de acesso o conhecimento e a prática profissional responsável, comprometida e envolta na verdade dos afetos.
Em minha trajetória aqui descrita, de forma sucinta, tenho a certeza de que ainda me restam inúmeros desafios a enfrentar, mas o que mais me mobiliza atualmente é à busca de um envolvimento maior com a vida acadêmica.
Read More