Ieda Maria Munhós Benedetti
Cristiano Di Giorgi
Neste trabalho, descrevo elementos contextualizam o cenário onde se insere o Provão e o processo de transição para o novo modelo: SINAES (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior), abordando o descaso com a educação desde o período do Brasil-Colônia, o “Coronelismo” e seus resquícios na cultura, bem como costumes locais que influenciaram de modo significativo às respostas das IES (Instituição de Ensino Superior), às diretrizes e exigências para o Ensino Superior, passando por fim pela globalização e as novas habilidades e competências por ela exigidas.
Aponto a necessidade de uma discussão sistêmica das mudanças propostas pelo MEC (Ministério da Educação), criticando as alterações em itens isolados, sem a devida análise do impacto que cada uma das mudanças provoca nos demais elementos do sistema como um todo.
Enfatizo as questões e transgressões éticas que perpassaram o Provão e outros processos que envolveram essa modalidade avaliativa do ensino superior
Entendo que o Provão se constituído em fator de mudanças em várias áreas de funcionamento do Ensino Superior, ressaltando-se entre elas a prática dos professores, constituindo-se, portanto como elemento de formação destes e de influência na sua prática profissional.
A partir da análise de entrevistas com diretores e coordenadores de cursos, e de questionários respondidos por professores do ensino superior, ligados aos cursos de Administração de Empresas e Pedagogia, interpreto as modificações geradas pelo provão e o a transição para o SINAES.
Este artigo toma por base a pesquisa desenvolvida no mestrado em educação, realizado na UNESP - Pres. Prudente, na linha de pesquisa “Políticas Públicas”. Além do trabalho desenvolvido na dissertação, viso nesse artigo, privilegiar a análise dos aspectos éticos envolvidos na avaliação do ensino superior na vigência da proposta do “Provão” e também a passagem para o SINAES.
A análise do processo avaliativo não pode ser pensada dissociada do cenário e contexto onde este ocorre. Para entendermos as questões éticas envolvidas no processo avaliativo das IES (Instituições de Ensino Superior) no Brasil é necessário pensarmos, por exemplo, no descaso com a educação desde o período do Brasil-Colônia, o “Coronelismo” e seus resquícios na cultura, bem como costumes locais que influenciaram, de modo significativo, as respostas das IES às novas diretrizes e exigências para o Ensino Superior, passando por fim pela globalização, novas habilidades e competências por ela exigidas.
Os avanços e o debate teórico sobre a temática aqui proposta também não se dá longe de “regimes de verdades” que se relacionam com poder, ou seja, os tipos de discursos que são aceitos e que fazem sentido como verdade; os mecanismos e instâncias que nos habilitam a discutir sobre falsos e verdadeiros; os meios pelos quais cada uma dessas afirmações são classificadas; as técnicas e procedimentos que são mais ou menos valorizados na aquisição da verdade e o status daqueles que são encarregados de dizerem as coisas que contam como verdadeiras.
Essa análise passa pela necessidade de uma discussão sistêmica das mudanças propostas pelo MEC que critique as alterações em itens isolados, sem a devida análise do impacto que cada uma das mudanças provoca nos demais elementos do sistema como um todo.
Entendo que o Provão mesmo com suas falhas, análises maniqueístas e faltas éticas que existiram no período em que esteve em vigência, constituiu-se em fator de mudanças em várias áreas de funcionamento do Ensino Superior, ressaltando-se dentre elas a prática dos professores, revelando-se, portanto como elemento de formação destes e de influência na sua prática profissional.
Em minha pesquisa inicial, no mestrado, a partir da análise de entrevistas com diretores e coordenadores de cursos, e de questionários respondidos por professores do ensino superior, ligados aos cursos de Administração de Empresas e Pedagogia, interpreto as modificações geradas pelo provão como segue.
Dentro das instituições públicas de ensino superior as diretrizes e exigências não causaram grandes transformações, assim, a pesquisa não apontou mudanças que efetivamente tenham sido motivadas pelo Provão na referida instituição. De fato, o que essa legislação exigiu para o ensino superior já compunha a cultura da instituição pública.
As deficiências encontradas e apontadas pela pesquisa ficam no âmbito da estrutura física e/ou infra-estrutura, abrangendo aqui as instalações físicas e equipamentos. Contudo, este quesito não foi analisado nas instituições públicas no âmbito dessa legislação.
A aparente indiferença ao Provão, entre o grupo pesquisado, também se mostrou digna de nota dentro dessa instituição por se revelar uma indiferença sintomática e defensiva. Pois veja: diante de resultados positivos, ao obterem conceitos “A” nas avaliações do MEC, aquilo que no primeiro momento era “indiferença”, ou tratado como “irrelevante”, se transforma em comemorações e parabenizações. Aqui a indiferença e aparente descaso pela avaliação caíram por terra quando a vaidade foi evocada.
No outro extremo, ocorreram sensíveis mudanças dentro das Instituições particulares de Ensino Superior (IES). Mudanças que foram motivadas por essas exigências e diretrizes para o ensino superior dentro das escolas particulares pesquisadas. Nesse sentido, denota-se uma questão significativa dentro de uma visão contextualizada e sistêmica do processo. No Provão, o método avaliativo foi o mesmo para instituições tão desiguais como as públicas e as privadas, no âmbito do ensino superior.
A titulação do corpo docente foi a exigência que mais mobilizou as Instituições de Ensino Superior (IES). Uma parcela significativa dos professores sem titulação (mestrado ou doutorado) buscou os cursos de pós-graduação, ou foi desligada dos quadros funcionais das instituições. Este item que antes da implantação dessas novas exigências e diretrizes para o ensino superior, era pouco valorizado nas instituições particulares locais, passou a ser motivo de maior preocupação, talvez porque representasse a sua maior defasagem.
A pesquisa apontou que grande parte dos professores, partindo de exigências das áreas administrativas da IES, passou a se reciclar e a buscar as pós-graduações. Até mesmo, professores com muitos anos de carreira, buscaram a atualização e a reciclagem. Em momentos anteriores à implantação do Provão seria comum encontrá-los em ritmo de “desaceleração” ou “a caminho da aposentadoria”.
A procura pela titulação nem sempre foi feita dentro de instituições reconhecidas pelo Ministério de Educação (MEC). Existem indicativos na pesquisa de que professores com titulação não reconhecida tenham sido apontados como titulados pelas instituições em seus relatórios encaminhados ao órgão avaliador, em uma tentativa de maquiar os dados e assim burlar a legislação.
Outro indicativo eticamente duvidoso, obtido na pesquisa dentro da temática titulação, refere-se ao “aluguel” de títulos. Professores titulados “emprestam” seus nomes às instituições, figurando como professores titulares em disciplinas que efetivamente não ministram ou não se apresentam com freqüência, sendo que o trabalho em sala de aula é desenvolvido por outros professores que não apresentam o quesito da titulação exigida.
O mercado para professores, desde a implantação do Provão, ficou altamente “comprador de títulos”. Professores titulados tiveram seus salários valorizados, enquanto os professores não titulados tiveram uma proporcional desvalorização salarial ou mesmo uma grande dificuldade em se manter no emprego. O quesito “experiência profissional” ou “reconhecimento profissional no mercado” não tem representado valorização nem possui reconhecimento dentro das Instituições de Ensino Superior na atual conjuntura. Se o tem, é em escala muito inferior ao do título conferido pela academia.
De fato, a titulação tornou-se a grande vedete acadêmica, sendo esta, condição de possibilidade quase exclusiva para contratação de profissionais professores? para o ensino superior. Outras habilidades e competências extremamente importantes ficaram minimizadas ou definitivamente esquecidas nas etapas de contratação de docentes.
A forma pela qual as Instituições de Ensino Superior (IES) acataram a exigências de titulação acabou gerando uma artificialidade. Nem sempre o mais titulado é o melhor professor, mas neste processo, sem dúvida o mais titulado é o mais valorizado em detrimento de qualquer outro quesito.
Por outro lado, a exigência da titulação minimizou o “apadrinhamento” nas contratações de professores, dentro das IES, onde havia casos extremos em que, para ser professor universitário bastava possuir contatos políticos, parentescos e afinidades com pessoas ligadas às áreas de contratação de pessoal.
Experiência profissional e de mercado, habilidades para relacionamento interpessoal, competência afetiva que outrora eram quesitos relevantes, perderam o papel principal para a titulação. Essas características eram importantes, pois além de compor um bom perfil para o profissional de ensino, figuravam como elementos atrativos para manter alunos dentro das instituições particulares, contribuindo com a redução da evasão, e por conseqüência influenciando na lucratividade. Tais características são agora coadjuvantes. Com a implantação do Provão, essas habilidades perderam importância especialmente nas instâncias administrativas das IES.
Curiosamente, após a implantação do vigente modelo avaliativo para o ensino superior, o mercado fez um movimento inverso. Os “professores titulados”, tão cobiçados pelas instituições particulares, passaram a onerar a folha de pagamento de tal modo que hoje se observa um grande número de demissões de doutores, fenômeno esse que merece ser pesquisado com profundidade. Tal fato, em uma primeira análise, me faz pensar que o processo avaliativo decretou uma exigência prontamente atendida pelas instituições particulares, do modo em que descrevo neste artigo, porém não criou uma “cultura” de pesquisa dentro das IES. Deste modo, tão logo as exigências puderam ser reinterpretadas, a pesquisa e seus pesquisadores ficaram alijados ou expurgados das instituições particulares.
O desempenho no Provão se constituiu como o principal indicativo de qualidade das instituições para a população e os resultados positivos obtidos nas avaliações, passaram a serem utilizados como estratégia de mercado. Assim, foram constatadas criações de campanhas de marketing que valorizam e focalizam as avaliações positivas obtidas junto ao MEC.
A compreensão da avaliação como um espaço de desenvolvimento e evolução em nossa sociedade, em geral, é bastante precária. Em sua maioria, nem as pessoas ligadas ao MEC nem as Instituições de Ensino Superior (IES) e tampouco os alunos estavam adequadamente preparados para a avaliação. A avaliação é um importante instrumento de coleta de dados sobre si mesmo ou sobre um trabalho. Contudo, quase que invariavelmente vem contaminada com uma conotação de julgamento, coerção e controle. Sendo assim, passa a ser um elemento de desprazer do qual se quer fugir.
Nem todas as instituições conseguiram trabalhar com o Provão como um instrumento para reavaliar sua qualidade de ensino e rever seu trabalho, porém seus departamentos de Marketing rapidamente conseguiram se apropriar deste processo e usá-lo como instrumento de divulgação.
Quanto ao aluno, que em tese deveria ser a figura central na dinâmica das relações de ensino quando se trata do Provão, em estratégias utilizadas em algumas instituições, deixou de ser objetivo final para ser o intermediário entre as relações do MEC e IES. A formação do aluno deveria ser a preocupação central da metodologia de ensino, das técnicas e da didática. A análise dos dados da pesquisa indicou que em algumas instituições particulares, quando o assunto é Provão, o aluno passou a ser “o meio”, “o instrumento”, a “coisa” a ser trabalhada para que o objetivo proposto pela instituição fosse atingido. Neste caso, o foco das IES ficou distorcido. Os objetivos das instituições passaram a ser o próprio resultado positivo a ser atingido no Provão e não mais a formação do aluno.
Conceberam então estratégias nos mesmos moldes criticados por Ronca (1991). Neste modelo, “Só se estuda se tiver prova, só se estuda para a prova, só se estuda se cair na prova, só se estuda o que cair na prova”. Desta forma, as equipes administrativas fizeram do Provão um objetivo em si mesmo, estudando o que poderia cair no Provão, dirigindo os conteúdos a serem trabalhados em sala de aula para os conteúdos que poderiam ser requeridos no Provão. Prepararam os alunos para o momento específico do Provão. Sendo o Provão um fim em si mesmo, fica o aluno alijado do que há de essencial na formação pessoal e profissional: o desenvolvimento da capacidade de pensar, criar, criticar, pesquisar e resolver problemas ligados a sua área de estudo e se possível ainda, interligar esse conhecimento específico com as demais áreas.
A coleta dos dados apresentada demonstrou que foram criados cursinhos preparatórios para o Provão, os programas das disciplinas foram adequados seguindo as tendências do que poderia cair no Provão, os alunos foram “treinados” para responder as questões do Provão, foram feitos simulados e trabalhos de motivação para que os alunos pudessem ter no Provão um desempenho máximo. O aluno passou então a ser preparado para responder ao provão e não para pensar, questionar e preparar-se para o exercício de uma profissão e para uma inserção responsável e ética.
No que tange a “Transparência nas relações entre o MEC e as IES” a análise dos dados traz fortíssimos indícios de que as relações entre MEC e as IES estiveram bastante comprometidas pela falta de transparência e de ética.
Recaíram sobre o MEC as seguintes insatisfações: várias instituições vêm apresentando resultados insatisfatórios e constantes insucessos nas avaliações desenvolvidas pelo MEC. O MEC, por sua vez, nada tem feito sobre o assunto ou caso venha desenvolvendo ações nesta área, estas não estão sendo divulgadas. No momento da implantação do Provão, o MEC afirmou que, em caso de não cumprimento das novas exigências, os cursos seriam fechados após uma seqüência de insucessos, ou seja, obtenção de conceitos D e E como resultado do Provão, conforme consta na lei. Em raríssimos casos isto ocorreu e cursos de péssima qualidade continuam no mercado.
Outra queixa que recaiu sobre o MEC diz respeito às “comissões preconceituosas”. As IES afirmam que as comissões do MEC foram formadas, quase que exclusivamente, por professores das universidades públicas e que estas já possuem pré-concepções contra as instituições particulares. Sugerem então comissões mistas, com a presença de avaliadores das escolas particulares, e até desafiam as instituições públicas a passarem pela avaliação de comissões compostas pelas particulares.
Neste desafio, feito muito mais em tom de catarse do que efetivamente como uma proposta efetiva, caberia às instituições públicas desenvolverem-se nos aspectos onde as particulares são hábeis: administrar custos, baixar o custo da formação do aluno da escola pública, avançar em estrutura e tecnologia, apresentar uma otimização da relação entre o número de professores e o número de alunos graduados, etc.
A crítica dirigida às instituições públicas, de fato, é uma reivindicação da sociedade em geral, que anseia pela otimização dos gastos com a formação dos alunos nos cursos superiores oferecidos por estas.
No que tange às instituições particulares, a pesquisa apurou denúncias bastante sérias, envolvendo a maquiagem de bibliotecas: livros são emprestados para compô-las apenas nos momentos em que as comissões fazem a avaliação. Após a visita, as bibliotecas são desmontadas. Livros antigos e defasados são declarados como atualizados e em maior número nos relatórios enviados ao MEC.
Tais maquiagens, como a falta de ética e de transparência, podem estar relacionadas a um processo de complementaridade negativa entre o MEC e as Instituições de Ensino Superior a serem analisadas. As Instituições possuem falhas em suas estruturas e são “herdeiras” de outras falhas, que em grande parte são de responsabilidade do MEC e do sistema de ensino por este desenvolvido.
Deste modo, ao desenvolver um processo avaliativo que permite maquiagens e falcatruas, posso considerar a hipótese de que o faz tendo em mente um sistema que comporte seus próprios erros. Assim, alunos com problemas em sua formação (problemas ligados em grande parte ao sistema de ensino) são avaliados por uma metodologia igualmente falha. As IES que recebem tais alunos são avaliadas por uma estrutura e metodologia avaliativa que aceita maquiagens, possivelmente como uma modalidade compensatória dos erros anteriores. Nesse sentido, a instituição herdeira de erro de outra instituição, ao ser avaliada pela primeira, tem cem anos de perdão.
Fica então claro que, dentro do item transparência, as relações estão bastante comprometidas. Diante dos dados obtidos com a pesquisa, torna-se claro algo que seria cômico se não fosse tão grave: frente ao processo de avaliação, algumas das Instituições de Ensino Superior pesquisadas, repetem o comportamento que elas próprias tanto criticam no aluno: colam, burlam dados, faltam com a transparência e com a ética.
Por mais boicotado, criticado e falho que seja o Exame Nacional de Cursos (ENC) é apenas uma parte do sistema maior do ensino no Brasil. Está longe de ser uma unanimidade, mas provocou mudanças e discussões.
O momento é de transição em todos os níveis das relações humanas, e na educação em especial. O cenário emergente, com a reorganização do sistema de produção, agrega novas necessidades educativas e exige novas competências que se somam às funções tradicionais da escola. Tais mudanças exigem novas posturas dos educadores, pois os melhores resultados e as formas mais adequadas para a implementação das transformações, que o momento histórico indica, são de caráter sistêmico.
[...] é preciso mencionar que outro traço importante das estratégias de reforma aplicadas no passado foi uma concentração na mudança de determinado elemento considerado fator-chave da reforma educacional: aumento dos salários dos docentes reforma dos conteúdos, reforma institucional, equipamento, infra-estrutura, etc. A avaliação dessas mudanças permite observar que um dos principais fatores que explicam seus modestos resultados é o enfoque unidimensional com que foram aplicadas. As mudanças educacionais mais dependem da interação de múltiplos fatores, que atuam de forma sistêmica. (MARBACK, 2001, p. 138).
O reconhecimento de que as mudanças necessárias sejam de caráter sistêmico, significa a necessidade de que sejam analisadas e levadas em conta, as conseqüências da alteração de um elemento específico sobre o todo e sobre os demais fatores. Não é necessário, nem factível, que todas as mudanças sejam desenvolvidas ao mesmo tempo.
Dentro da proposta de reforma sistêmica, a questão central, passa a ser então, estabelecer a seqüência em que se deve mudar cada um dos componentes. Para tanto, não existe uma fórmula pré-determinada que indique quais mudanças devam anteceder ou suceder outras. Tais mudanças devem ser definidas levando-se em consideração as características individuais e as peculiaridades locais. Seria impossível determinar uma seqüência similar para contextos diferentes. Para que as mudanças ganhem eficiência, há que se considerar características locais, que neste trabalho chamei de “herança coronelista”, características autoritárias e centralizadoras presentes em algumas IES, assim como históricas, tais como a influência da proposta educacional da ditadura militar e anteriormente pelas relações coronelistas, onde a educação era um “bem de uso” para os descendentes dos Coronéis “donos de terras”, e também apresentando uma relação de “propriedade” sobre as idéias e opiniões de pessoas com quem mantinham relações de dependência econômica.
Diante de propostas de mudanças que não consideram o caráter sistêmico nem as características regionais, não causa espanto que em IES locais, onde empregos eram ou ainda são “moeda de troca” para favores políticos, propostas de avaliação como o Provão sejam burladas, alvos de maquiagem e tratadas com falta de ética e transparência, como apontam os questionários e as entrevistas.
Sem observar as características sociais, políticas, o caráter ético das relações humanas vigentes nesta cidade e o caráter sistêmico, o Provão como qualquer outra medida isolada, terá sua eficiência limitada. Não quero com isso negar os avanços obtidos pelas exigências e diretrizes para o ensino superior na cidade, mas a análise acima me fez crer que sua eficácia foi perdendo gradativamente a força.
O Provão buscou reformar o sistema em apenas um dos seus componentes: a avaliação da qualidade. Enquanto a crise do sistema educacional era um problema apenas de deficiência do cumprimento de algumas metas, tais como socialização e desempenho, as propostas reformistas eram razoáveis.
Entretanto, as mudanças sociais recentes e as novas exigências advindas do processo de globalização, fizeram com que o discurso reformista tradicional esgotasse suas possibilidades de oferecer respostas às novas necessidades impostas à educação.
O Provão, ainda que “sabotado” por algumas estratégias pouco éticas, já discutidas anteriormente, realmente provocou mudanças no cenário do ensino superior. Porém essas mudanças revelam-se inadequadas às novas demandas do ensino. As necessidades de transformação no ensino são muito mais profundas e de ordem estrutural.
Para uma educação escolar adequada à democracia, não se trata, enfim, de melhorar ou aumentar a qualidade da educação escolar. Trata-se de mudar de qualidade, edificar um outro modelo baseado na produção de conhecimento. Nesse modelo, mais importante que estabelecer um padrão nacional ou internacional, é que cada grupo local estabeleça, com crescente nitidez, o conhecimento que necessita produzir, podendo, por conseguinte, tornar evidentes os conhecimentos já existentes que suportem essa produção.(DI GIORGI, 2001, p.133).
Com a sucessão presidencial de 2002 a nova política educacional trouxe o “SINAES” como modelo avaliatório para o ensino superior. Di Giorgi, (2003) escreveu artigo sobre o tema onde aponta esse modelo avaliativo como uma “ação burocratizante” dentro do processo avaliativo do ensino superior. Segue citação objetivando expor ao leitor as idéias principais que compõem esse modelo avaliativo e a concepção, o desenho e a operacionalização do SINAES.
Os instrumentos dos SINAES, são os seguintes:
Avaliação institucional: É entendido como o instrumento central, organizador da coerência do conjunto. Assim, entende-se como central dentro do processo de avaliação a auto-avaliação realizada pela própria instituição, que se combina com processos de avaliação externa. Pretende-se que cada instituição constitua uma cultura, auto-avaliação permanente.
Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior-CONAES: órgão coordenador e supervisor do SINAES. Essa comissão deverá, entre outras funções, coordenar o SINAES, analisar e emitir parecer conclusivo sobre os relatórios de avaliação e divulgar, periodicamente, os resultados de avaliação institucional em diversos âmbitos. A CONAES, de acordo com a proposta, deverá ser composta de 12 membros, especialistas em avaliação da educação superior, nomeados pelo Presidente. Deverão ser membros natos os dirigentes da SESu/MEC, do INEP, da CAPES e da SEMTEC.
Propõe-se que, na avaliação institucional, se lance mão tanto de procedimentos quantitativos quanto qualitativos. Constará também do processo avaliatório um roteiro básico e comum a todas as instituições, que será estabelecido tanto para a avaliação externa quanto para a auto-avaliação. Entende-se, no entanto, que tal roteiro não se constituirá numa camisa de força. (Di Giorgi, 2003 p. 49)
Recomenda-se que as IES constituam comissões institucionais de avaliação, auto-avaliação e uma Comissão Central de Avaliação, assim como, em alguns casos, caiba também a criação de Comissões Setoriais de Avaliação. A avaliação externa se dá após a auto-avaliação ser concluída internamente à IES (e aprovada por sua instância superior).
Nesse modelo avaliatório uma série de comissões são formadas e, em tese, deveriam interagir e superar deficiências do modelo anterior, o Provão, dando ao processo mais molibidade e possibilidades avaliativas e retroalimentadoras em vários momentos diferentes, possibilitando que as instituições se remodelassem e superassem as dificuldades apresentadas pelas etapas anteriores.
A proposta que em tese e aparentemente daria mais mobilidade ao sistema. Contudo, a grande quantidade de comissões a serem formadas e que deveriam interagir, acabaram demonstrando pouca eficiência interacional.
Entendo que esta é uma questão extremamente espinhosa: como conciliar um processo de auto-avaliação ‘’desarmado’’ das IES, voltado à real identificação de seus pontos fortes e fracos, e uma real ‘’abertura’’ para as comissões dos problemas das instituições, com a feroz competição no mercado de IES que existe hoje (e que certamente não deixará de existir no futuro previsível)?
É uma questão extremamente complexa, mas que passa certamente pelo interesse da sociedade civil sobre a questão. Afinal, a única forma de domesticar o Estado e o mercado, através da ação comunicativa, é pela construção, no seio da sociedade, de um espaço público de diálogo tecido numa intersubjetividade racional. Parece-me que o documento pouco acrescenta a esta questão da relação entre avaliação e regulação; na realidade, elude-a.
Outra questão se afigura problemática é o número de comissões a serem formadas no processo de avaliação proposto. Assegurar a lisura e a qualidade destas comissões não será de forma alguma tarefa fácil. (di giorgi, p. 56)
Orientado em tese, por principior ética e academicamente corretos, é no entanto montado de uma forma tão burocratizada que acaba por predominar uma incapacidade e efetivamente agir nos rumos do ensino superior no Brasil.
A substituição do modelo proposto pelo Provão que se baseou sobretudo no mercado, por uma que se baseia principalmente no Estado, acabou por não apresentar ganhos qualitativos. Pelo contrário, o fenômeno observado mais recentemente, resultante da substituição de um modelo avaliativo pelo outro, e que merece investigação científica mais aprofundada, é o grande número de demissões de professores doutores por parte das escolas particulares, aparentemente ligadas a questões salariais.
Na disputa pela participação no processo avaliativo e, em última instância, pelos espaços e poder dentro da educação superior no Brasil, a transição dos modelos avaliativos resultou em uma inócua ação burocratizante. Perde a qualidade de ensino, perde a sociedade como um todo.
Cabe então, no mínimo, a sugestão de continuidade de pesquisas que avancem na área da avaliação do ensino superior no Brasil, que cresce visivelmente, de modo desordenado e com qualidade questionável.
Referências Bibliográficas
BENEDETTI, I. M. M. O provão em questão: o passado presente e perspectivas para a avaliação universitária. Maringá: Dental Press, 2003.
Di Giorgi, C. A. G. O SINAES: ação comunicativa ou burocratização? Série Estudos, Periódicos do Mestrado em Educação da UCDB, Campo Grande: Editora UCDB n 16, p. 49-60, 2003
HABERMAS. J. O que significa socialismo hoje? Novos Estudos. Revista do CEBRAP. São Paulo, n. 30, set. 1991.
MARBACK, G. Avaliação institucional como instrumento de gestão universitária. 2001. (Tese de Doutorado). Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília, 2001.
SINAES – Base para uma nova proposta de Avaliação do Ensino Superior (Mimeo), 2003.
RONCA, P. A. C.; TERZI, C. do A. A Prova Operatória. 21 ed. São Paulo: Editora do Instituto Esplan, 1991.
TEDESCO, Juan Carlos. O novo pacto educativo. São Paulo: Ática, 1999.